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“Justiça nunca foi feita”, diz sobrinho de Galdino, 24 anos após assassinato


 O som do maracá convida os seres da floresta a se juntarem ao ritual. Dentro da cabaça, sementes simbolizam indígenas, especialmente a memória dos que se foram. O som que ecoa ao chacoalhar o instrumento transmite uma energia que entra no espírito do povo da aldeia, que honra seus antepassados.

No território indígena Caramuru-Paraguaçu, ocupado pelo povo Pataxó ha-ha-hãe, no sul da Bahia, um nome sempre é lembrado com reverência: o de Galdino Jesus dos Santos. Cinco assassinos atearam fogo ao corpo do cacique enquanto ele dormia em uma parada de ônibus na avenida W3 Sul, em Brasília, em 1997. No próximo dia 20 de abril, o crime completará 24 anos.

Quase um quarto de século após a tragédia, familiares de Galdino trabalham para manter viva a sua memória e ainda lutam pelos direitos que ele veio a Brasília reivindicar, quando acabou morto. O assassinato de Galdino continua a provocar repercussões nas ações cotidianas do povo Pataxó HãHãHãe.

“É uma história que para a sociedade está morta, mas segue viva e guardada dentro da gente. Reacender essa memória é viver a nossa história“, descreve o sobrinho de Galdino Iglesio de Jesus Silva (de nome indígena Thyrry Yatsô), que tinha 11 anos quando recebeu a notícia da morte do tio.

Ele se tornou historiador e registra depoimentos sobre sua comunidade. “Continuamos lutando pela terra. Muitos indígenas foram assassinados antes e depois de Galdino, mas sem qualquer repercussão local ou nacional. A lembrança do ocorrido tem possibilitado fazer com que as demandas do passado se transformem em exigências do presente”, diz.

Em artigo elaborado durante os estudos no Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia da Bahia (IFBA) e premiado, Iglesio reconstrói por meio de entrevista com anciãos a história de vida do tio e seu simbolismo dentro da comunidade. O objetivo era também evidenciar suas relações afetivas na condição de ser humano, como pai, filho e membro de uma comunidade de pertencimento étnico.

“A memória desse caso tem possibilitado a integração de momentos aparentemente antagônicos, rompendo com o silenciamento da luta histórica pela terra e pela identidade étnica”, escreve o sobrinho de Galdino.

Em 1997, Galdino chegou a Brasília acompanhado de outras lideranças para exigir a demarcação do território do qual era originário. Os indígenas sofriam com a violência e a perseguição de fazendeiros e madeireiros que desejam tomar as terras.

Um dos anciãos entrevistados para o projeto, o cacique Gerson De Sousa Melo, da etnia Kariri Sapuiá, lembra que pouco antes de morrer Galdino estava em reunião com o então presidente Fernando Henrique Cardoso para tratar da demarcação das terras dos Pataxó HãHãHãe. “Horas depois do referido encontro, registrou-se o brutal assassinato do líder Galdino.”

No artigo de Iglesio, a anciã Maura Titiah relembra a viagem à capital do Brasil como “um momento horrível” para o seu povo. A história dos homens, mulheres e crianças de sua etnia é marcada por relatos dos que precisavam fugir de fazendeiros que os capturavam no meio da mata, levando-os para a cidade, onde passavam a viver muitas vezes enjaulados. Naquela madrugada, na W3 Sul, Galdino não teve qualquer chance de defesa contra seus predadores.

Maura Titiah acompanhou Galdino na viagem. “Fomos à delegacia para prestar o boletim de ocorrência e, ao chegarmos ao local, nos deparamos com os criminosos, que já estavam presos. Ainda falei com eles: ‘Vocês são umas crianças, por que que vocês tiraram a vida de meu parente, pai de família, trabalhador, líder, honesto?’ Por quê?”, pergunta-se a anciã.

Pelo direito à terra

Iglesio relata a luta de seu povo pela terra, uma batalha contra grandes fazendeiros de cacau e de gado, que já teve vários capítulos. “O povo indígena Pataxó HãHãHãe se constituiu nos anos de 1926, quando o Ministério da Guerra encaminhou a demarcação dos 36 mil hectares de terra para usufruto daqueles indígenas que até então viviam dispersos numa área de mata com muita caça”, traz o artigo.

Os depoimentos dos entrevistados expressam que Galdino foi um exemplo de guerreiro, estando à frente das mobilizações contra a expulsão do seu povo dos seus territórios tradicionais, nas décadas de 1950 e 1960. “Tal processo de expulsão foi brutal, expulsos de suas terras a pauladas, tendo suas casas e roças queimadas por grandes fazendeiros e posseiros de terras daquela localidade”, descreve Iglesio.

Galdino não foi o primeiro da família a morrer lutando pela demarcação dessas terras. Antes dele, o seu irmão e líder cacique João Cravinho, foi assassinado por um fazendeiro em uma emboscada na estrada que liga aldeia à cidade de Pau Brasil. Cravinho teve seu corpo despedaçado por vários cortes de facão.

Segundo consta no artigo, João Cravinho estava em sua casa quando chegou o recado para que ele fosse à Funai atender uma chamada via rádio, com urgência. Ele seguiu a pé para a cidade, e no meio do caminho foi surpreendido por um pistoleiro que avançou em sua direção com um facão. Tanto Galdino quanto João Cravinho eram guerreiros bem preparados espiritualmente.

“João Cravinho tinha o hábito de todos os dias passar com os pés descalços por cima de brasas acesas. Em um determinado dia, próximo ao seu assassinato, ele se queimou, coisa que não acontecia. Foi então que ele disse: ‘Mãe, no próximo ano eu não viverei para dar continuidade à nossa luta, e não verei o dia de nossa vitória na conquista do nosso território’”, relata Aldenir dos Santos, habitante da aldeia.

Somente em 2 de junho de 2012, após 30 anos de luta dos indígenas, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Ordinária 312 e deu a posse definitiva do território aos Pataxó HãHãHãe. Ainda assim, Iglesio denuncia que os habitantes da terra, nos dias de hoje, preocupam-se com a ação de fazendeiros e madeireiros, que fazem constantes investidas de retomada daquele território.

“Com frequência surgem novas ações na Justiça pedindo reintegração e também ameaças dentro do território. Os fazendeiros afirmam que somos improdutivos, porque usamos a terra para subsistência e não para grandes negócios, para extrair grandes riquezas. Nossa história ainda é de resistência”, descreve.

Generosidade

A memória de Galdino não se resume à tragédia. “Ele era do povão, exemplo de líder do nosso povo, e, por respeito à sua luta, depois que enterramos ele, os caciques decidiram retomar as terras. Sua morte nos motivou, incentivou nosso povo. Ele foi e sempre será grande líder”, declarou Maura.

Maura lembra ainda que Maria, mãe de Galdino, teve um sonho antes de o filho viajar. Nele, via um avião pegando fogo e dentro dele um índio morria. “Logo depois da morte, percebemos que o sonho era um aviso, nessa conversa entre Maria e eu, Galdino disse que ele não queria ir a Brasília, chegou a pensar em desistir”, lembra. A mãe e o pai de Galdino morreram anos após perder o filho. Galdino também deixou viúva e três filhas, que vivem em uma área dentro da mata.

O cacique Nailton Pataxó conviveu de perto com Galdino. Descreve-o como “um índio legítimo, observador, cauteloso, de características bem simples e trabalhador”. Alguém que vivia da agricultura, assim como todos os membros da comunidade. “Nas viagens, ele se destacava representando muito bem o nosso povo. Por todas essas qualidades, todos faziam questão de sua presença, tendo-o como exemplo para a comunidade.”

O índio não morre, apenas passa deste mundo para o mundo espiritual, e de lá, assim como os outros, estarei ajudando na continuação dessa luta

NAILTON PATAXÓ

As pessoas entrevistadas relembram que tudo o que Galdino plantava em sua roça era dividido com o povo que mais precisava. “Mesmo sendo humilde e tímido, muitas vezes era um dos líderes incentivadores da coletividade e da expansão da comercialização dos nossos produtos agrícolas na cidade de Pau Brasil, que antes de municipalizar-se chamava Santa Rosa”, traz Iglesio.

As narrativas de luta e o trágico assassinato de Galdino fortalecem o sentimento coletivo e evidenciam a importância de valorizar lideranças e a cultura indígena. “São aspectos que mantêm e fortalecem a nossa unidade, lembrando a todo momento com o apoio das mulheres, matriarcas, conselheiras, companheiras, guerreiras, pessoas que sempre estiveram presentes em todos momentos de nossas lutas”, destaca o sobrinho.

Uma dessas mulheres é Marilene Pataxó ou Yaranawy, uma entre os 12 irmãos de Galdino, que assumiu a liderança da aldeia e tornou-se cacique, após a morte dele. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo naquela aldeia.

“Aceitei como desafio ser cacica e fiquei sete anos no cargo. Foi um desafio danado, eu desafiei os homens da aldeia, fui ousada. Nós não tínhamos acesso à política, às reuniões. Quando eu passei a ser cacica, as mulheres tiveram direito de serem ouvidas dentro e fora da aldeia”, lembra.

Ela ficou no cargo entre 2009 e 2013 e viu o fortalecimento da organização das anciãs do aldeia. Ainda hoje quando fala da partida de Galdino e das consequências disso para seu povo, Marilene chora. Ela lembra que estava fazendo farinha quando recebeu a notícia triste.

“Minha vida desmoronou, mas nem por isso baixei a cabeça. Meu irmão era uma pessoa muito consciente, e nós éramos muito apegados, a gente morava perto um do outro e compartilhava tudo. A gente dividia tudo um com o outro”, relata. Marilene também foi presidente do Conselho de Saúde e atualmente é conselheira.

Problemas atuais

Além das ameaças de invasão de suas terras, o povo Pataxó convive com a presença de problemas trazidos pelos brancos, como tráfico de drogas, alcoolismo e violência. Os casamentos entre indígenas e pessoas de outras raças, além da urbanização das aldeias, têm causado esses transtornos, como apontam lideranças.

“O mundo contemporâneo tenta invadir o espaço o tempo todo. Não temos mais a liberdade de viver de portas abertas, de deixar os filhos livres e soltos, porque têm acontecido esses problemas. As nossas lideranças têm trabalho arduamente para criar projetos que tragam os jovens para a escola e de volta aos nossos costumes”, relata Iglesio.

O historiador ressalta que uma das principais armas usadas na conquista desse território foi a valorização da cultura, o canto do toré, as danças, crenças, armas tradicionais como a borduna, arco, flecha, maracá, lança e pinturas corporais. “Para nós, são o nosso escudo ou roupa, nossas crenças na ancestralidade, espiritualidade e fé em nosso pai Tupã (Deus)”.

“Os jovens pataxó HãHãHãe têm um papel importante na comunidade, eles precisam continuar a luta colocando os rituais, suas crenças, os trabalhos artesanais na frente de tudo, isso é fundamental para vencer qualquer luta. E ele precisa se unir, caso contrário, um dia iremos perder nossas terras novamente, eu temo isso.”

A pandemia também fez vítimas entre o povo Pataxó, que perdeu um de seus maiores líderes, Gerson Souza Melo. A Covid-19 alterou a rotina na aldeia. “Somos acostumados a viver no coletivo como um enxame de abelhas. A pandemia teve um impacto tão grande que afetou a nossa convivência coletiva, o psicológico do povo na aldeia, muitos adoeceram por não ter o hábito de se isolar, deixar de tomar banho de rio, usar máscara, deixar de fazer os rituais, de deixar de ir pra escola”, descreve Iglesio.

A morte de Galdino

Por volta das 5h30 de domingo, 20 de abril de 1997, cinco amigos saíram do Centro Comercial Gilberto Salomão em um carro Monza preto, após uma balada. Na parada de ônibus da 703 Sul, estacionaram o veículo ao ver uma pessoa dormindo ao relento. Tratava-se do cacique Pataxó Hã-hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos, 44 anos.

Os cinco criminosos moravam no Plano Piloto e eram de famílias de classe média alta. Antônio Novely Vilanova, na época com 19 anos, Max Rogério Alves, 19, Tomás Oliveira de Almeida, 19, Eron Chaves Oliveira, 18 e G.A.J., 17, carregavam álcool e fósforos. Eles utilizaram o material para queimar vivo o indígena, que visitava Brasília pela segunda vez.

O cacique foi transportado debilitado e, após laudo médico, constatou-se que ele teve 95% do corpo consumido por queimaduras. Galdino não resistiu. Os assassinos foram julgados e condenados a 14 anos de prisão em 2001, e deveriam ter permanecido pelo menos nove anos em regime fechado.

Em 2003, Antônio Novely e Max Rogério, enteado de um ex-ministro do TSE, foram vistos tomando cerveja num bar. Em 2004, todos eles já estavam em liberdade. “Até hoje isso fere o povo Pataxó. Para a gente, enquanto família e enquanto povo, a Justiça nunca foi feita”, afirma Iglesio.

Metrópoles

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