Por Elismar Bezerra
A consciência é fruto do conhecimento, que nasce das relações sociais estabelecidas pelos homens no processo material de adequação da natureza às suas necessidades. A consciência é estágio superior do processo de reinvenção da vida e, assim, tem conseqüências práticas que, às vezes, dói. Ir contra a maré não é tarefa fácil e, num mundo em que a mediocridade do politicamente correto impera, o “correto”, para não doer, é silenciar-se ou seguir a avalanche remoendo o desconforto da adesão. Então, que me desculpem os empolgadíssimos com a decisão do STF sobre a Lei da Ficha Limpa, mas não me iludo com isso.
O Brasil vive uma nova fase do Capitalismo, seja em relação aos métodos de trabalho e processos produtivos, com a adoção de novos equipamentos e tecnologias que exigem um “novo” tipo humano para operá-los; seja em relação a sua presença no cenário mundial, como “país emergente” (sabe-se lá o que isso significa), etc.
Caracteriza essa nova fase, também, a inclusão de amplos setores da população que vivia na miséria e passaram, através da assistência do governo federal, a ter o direito de comer e morar pobremente; embora não devamos esquecer que milhões de brasileiros ainda vivem na miséria. Por meio de uma parafernália de instrumentos de persuasão (que vai da internet à TV, passando pela Escola, etc.) os governantes criaram um “clima” de bonança, de modo que se tem a impressão de que todos os nossos problemas acabaram; que existe o pleno emprego e que as oportunidades de prosperar estão dadas para todos, especialmente para os mais pobres. Esse “clima” ganhou contornos de realismo diante da crise do Capitalismo (mais uma) que se mostra mais gravosa na Europa; onde o desemprego bate recorde, direitos fundamentais dos trabalhadores são subtraídos, servidores públicos são demitidos, serviços públicos são destruídos, tudo no sentido de “reduzir gastos” para debelar uma crise que não foi gerada pelos trabalhadores.
Especialmente os setores médios da sociedade dão a impressão de que o Brasil é a maior potência mundial, de modo que, mergulhados no consumismo, não raramente fazem aflorar o tipo humano forjado pelo Liberalismo: egoísta, fútil e arrivista. Mas, uma olhada rápida nos números do Censo do IBGE mostra o quanto é desmedida essa empolgação e perverso esse modelo de desenvolvimento. Em Mato Grosso, aproximadamente, 1∕3 da população (941 mil pessoas) declarou não ter rendimentos mensais, mais de 600 mil pessoas recebem entre 1∕4 de salário mínimo e 01 salário mínimo por mês, mais de 500 mil pessoas recebem entre 01 e 02 salários mínimos por mês – a população total do estado soma pouco mais de 03 milhões de pessoas. No sentido oposto, o PIB estadual, que é a totalidade das riquezas produzidas pelos trabalhadores aqui, que em 2002 totalizava 20,9 bilhões de reais, em 2009 saltou para 57,29 bilhões de reais. Essas duas realidades revelam a brutal concentração de renda e riquezas em nossa terra. Na verdade, a Europa e os USA continuam sendo os países centrais do Capitalismo, onde estão localizadas as sedes das grandes empresas e trustes mundiais; e o Brasil continua a ser um país periférico, onde as filiais daquelas empresas se instalam e “operam” sob condições especiais, inclusive com generosos incentivos fiscais, que garantem lucros altíssimos que são mandados “legalmente” para suas matrizes. Exemplo disso são as montadoras de automóveis que, no ano passado, mandaram para suas matrizes mais de 05 bilhões de dólares em lucros arrancados daqui.
É nesse contexto que precisamos entender o caráter “transformador” da Lei da Ficha Limpa. Ela precisa ser compreendida no contexto da materialidade que substancia o aparato jurídico-político brasileiro. Materialidade que se evidencia no fato de que, nesse mesmo momento, o povo Guarani-Kaiowá está sendo dizimado pelos capitalistas do agronegócio sem merecer qualquer gesto dos órgãos da Justiça no sentido de impedir essa destruição; de fato, a Justiça assiste inerte o desrespeito à Constituição e às leis infraconstitucionais praticados por aqueles latifundiários contra os direitos desse povo originário. Ali fica claro que, quando a Lei contraria os interesses do Capital, a vontade deste vira lei e a Lei vira pó. Entretanto, a dominação para ser eficaz e eficiente não pode ser efetivada apenas por meio da violência. Desse modo, a Lei não pode se revelar aos olhos das massas como vontade da dominação, isto é, como instrumento da classe dominante para conformar as massas trabalhadoras ao seu modo de vida; ela precisa parecer que é um instrumento que regula a vida indistintamente e que tem como objetivo o bem geral da sociedade.
De fato, quando há contradição entre o que diz a Lei e a vontade do Capital, como no caso do Código Ambiental, em que muitos latifundiários estavam sendo penalizados por desrespeito às leis ambientais, os empresários impõe o assunto no Parlamento e faz mudar a Lei de modo a legalizar a ilegalidade. Assim, eles recuperam o caráter transcendental da Lei e impõe a sua vontade às massas como sendo do interesse de todos e, ainda, sinicamente, propagam que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. É por isso que, agora, querem levar o problema da demarcação das terras indígenas para ser decidido no Congresso Nacional, como se já não houvesse leis que regulam a questão da terra e dos territórios dos povos originários. Na verdade, o que eles querem com essa estratégia é mudar a legislação no sentido de não demarcar mais nada em favor dos índios e reduzir as áreas já demarcadas; mais que isto, querem se apropriar dessas terras com o discurso que, com os índios, essas terras estão improdutivas.
Assim, a validação pelo STF da Lei da Ficha Limpa se insere no conjunto das necessidades jurídicas e políticas exigidas pela “nova” realidade do processo econômico-social brasileiro, especialmente porque ela foi uma exigência da opinião pública na esperança de que, com esse instrumento, pudesse frear os desmandos. Qualquer observador razoavelmente atento percebe que há uma insatisfação generalizada da população com os “governantes”, isto é, com os parlamentares, prefeitos e governadores; essa indignação honesta, necessária e justa está, entretanto, equivocada porque não foca, para além desses prepostos, o cerne do problema: o sistema do Capital, cujos controladores estão longe dos holofotes televisivos. É verdade que esses “governantes”, em sua quase totalidade, merecem o desprezo da população, mas esse gesto para ser eficaz precisa compreender o papel que essa gente desempenha, isto é, a “função” de prepostos, pára-raios dos que efetivamente são os donos da economia e, por meio desta, governam a sociedade. Desse modo, a Lei da Ficha Limpa foi “aceita” pelo STF como forma de dar uma satisfação para a indignação popular, mas, de fato, a Lei não tinge os governantes reais, os seus “funcionários”, os “políticos”, isto é, os que estão no Parlamento, no Judiciário e no Executivo, em seus diversos níveis, como “governantes”; afigura-se, então, como um sofisticado instrumento da dominação do Capital.
É muito esclarecedora a resposta que um grande empresário do agronegócio, há algum tempo atrás, deu a um chefe de partido que o foi convidar para ser candidato a Senador: “Era só o que faltava: nessa altura da minha vida, me meter com política para ser chamado de ladrão”. Claro, a sua vontade política, seus interesses, já estavam respeitados no Congresso sem que ele precisasse estar lá com mandato. Aquele empresário e os demais da sua classe governam desde os seus espaços privados os deputados, os senadores e demais “governantes” sem precisar do voto popular. Se verificarmos a composição do Parlamento Federal, no Senado, por exemplo, não se vê ali quase nenhum representante dos trabalhadores; é uma “casa” comandada pelos representantes da grande indústria, das construtoras, do agronegócio, do sistema financeiro, etc. Ali as ordens e as exigências do Capital determinam a pauta e as votações. Assim, quando esses mandatários estão muito desgastados junto à opinião pública são simplesmente descartados e substituídas por “novos líderes”, os quais aparecem à população como promessa de nova vida. Para os grandes empresários, que não precisam do voto popular para governar a sociedade, não importa quem esteja no Parlamento, no Executivo ou no Judiciário, importa que respeitem e defendam intransigentemente seus interesses e suas vontades, desse modo, a Lei da Ficha Limpa, para eles, não tem a menor importância.
Assim, enquanto muitos se exultam com a aprovação da Lei da Ficha Limpa, achando que ela será um rigoroso instrumento moralizador da política brasileira, os chefões da economia vivem o conforto da suas governanças em seus luxuosos escritórios particulares, distantes do sufrágio universal, de onde comandam a vida e a morte e a lei não chega, não os alcançam. Então, a Lei da Ficha Limpa se configura como uma panacéia que só no longo prazo a massa trabalhadora, especialmente os setores médios, perceberá a sua ineficiência e fragilidade diante do mundo real. Perceberá que foi enganada sobre o poder transformador da Lei, mas aí, alguma outra medida terá sido pensada e estará sendo efetivada pelos prepostos (intelectuais, parlamentares, jornalistas, etc.) dos governantes reais, de modo a mobilizar e conformar a indignação e revolta da massa no sentido de os grupos dominantes seguirem governando a sociedade. Desse modo, penso que a lei da Ficha Limpa precisa ser desvelada dessa sua natureza perversa, negando essa natureza com um outro movimento e um novo conteúdo.
Devemos, pois, mostrar, por um lado, que a Lei, per si e por sua natureza, não consegue atingir e subtrair o poder dos grandes da economia, os que governam os “nossos governantes” e, sendo assim, ela não pode acabar com a imoralidade desses “governantes”. Por outro lado, devemos defender a alteração do seu enunciado, de forma a ampliar o seu poder de abrangência até atingir o empresariado, especialmente os que recebem alguma subvenção do Estado. Abrangendo, também, a iniciativa privada, a Lei poderia impor sanções aos empresários que praticassem crimes ambientais, econômicos ou sociais; essas penalidades poderiam ser similares às previstas aos “políticos” como, por exemplo, o confisco pelo Estado dos seus bens e, além disso, o impedimento por, pelo menos, oito anos de comerciar, ou organizar e gerenciar empresas. Desse modo, transformamos o elemento jurídico-formal, relativamente inócuo, em instrumento político-pedagógico de elevação intelectual e cultural das massas, de maneira a explicitar o verdadeiro caráter da Lei em nossa sociedade e, mais que isso, garante-se poder da sociedade sobre a atividade empresarial.
É obvio que tal proposta se configura contra a lógica do Capital, a qual exige a livre iniciativa, que não é outra coisa, senão, a liberdade para comprar e vender; como no sistema econômico-social em que vivemos os trabalhadores não tem nada para vender, senão a sua própria força de trabalho, fica claro o caráter dessa liberdade. Percebemos que a empolgação com a Lei da Ficha Limpa reflete muito a necessidade da sociedade ter algo para acreditar diante do descalabro, uma espécie de alívio para a angústia de ver cotidianamente a corrupção sendo praticada como modo de ser dos nossos “governantes”. Entretanto, a superação desse estado de coisas exige mais que uma lei, exige o confronto político, ideológico e cultural à materialidade que gera tudo isso; exige a compreensão do funcionamento da sociedade do Capital por parte das massas trabalhadoras. Dessa forma, o alívio para a nossa angústia e indignação ético-política não pode significar a nossa auto-enganação, mas, a reinvenção do viver para além do que a Lei pode – ainda que esta possa servir como instrumento político-pedagógico da luta.
Professor Me. Elismar Bezerra Arruda
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