FILIPE COUTINHO
DA ÉPOCA
O ministro Gilmar Mendes, que foi interceptado em conversa com a Silval Barbosa |
Em 15 de maio do ano passado, o Supremo Tribunal Federal, a pedido
da Procuradoria-Geral da República, autorizou a Polícia Federal a vasculhar a
residência do então governador de Mato Grosso, Silval Barbosa, do PMDB, à cata
de provas sobre a participação dele num esquema de corrupção.
Cinco dias depois, uma equipe da PF amanheceu no duplex do
governador, em Cuiabá. Na batida, os policiais acabaram descobrindo que Silval
Barbosa guardava uma pistola 380, três carregadores e 53 munições.
Como o registro da arma vencera havia quatro anos, a PF prendeu o
governador em flagrante. Horas mais tarde, Silval Barbosa pagou fiança de R$
100 mil e saiu da prisão. Naquele momento, o caso já estava no noticiário.
Às 17h15, o governador recebeu um telefonema de Brasília. Vinha do
mesmo Supremo que autorizara a operação.
“Governador Silval Barbosa? O ministro Gilmar Mendes gostaria de
falar com o senhor, posso transferi-lo?”, diz um rapaz, ligando diretamente do
gabinete do ministro. “Positivo”, diz o governador.
Ouve-se a tradicional e irritante musiquinha de elevador. “Ilustre
ministro”, diz Silval Barbosa.
Gilmar Mendes, que nasceu em Mato Grosso, parece surpreso com a
situação de Silval Barbosa: “Governador, que confusão é essa?”. Começavam ali
dois minutos de um telefonema classificado pela PF como “relevante” às investigações.
O diálogo foi interceptado com autorização do próprio Supremo –
era o telefone do governador que estava sob vigilância da polícia.
Na conversa, Silval Barbosa explica as circunstâncias da prisão.
“Que loucura!”, diz Gilmar Mendes, duas vezes, ao governador (leia ao lado um
trecho da transcrição da conversa).
Silval Barbosa narra vagamente as acusações de corrupção que pesam
contra ele. Gilmar Mendes diz a Silval Barbosa que conversará com o ministro
Dias Toffoli, relator do caso. Fora Toffoli quem, dias antes, autorizara a
batida na casa do governador. Segue-se o seguinte diálogo:
Silval Barbosa: E é com isso que fizeram a busca e apreensão aqui
em casa.
Gilmar Mendes: Meu Deus do céu!
Silval Barbosa: É!
Gilmar Mendes: Que absurdo! Eu vou lá. Depois, se for o caso, a
gente conversa.
Silval Barbosa: Tá bom, então, ministro. Obrigado pela atenção!
Gilmar Mendes: Um abraço aí de solidariedade!
Silval Barbosa: Tá, obrigado, ministro! Tchau!
Silval Barbosa é acusado de corrupção pela PF num inquérito que corre no Supremo (Foto: Reprodução) |
Meia hora após o telefonema de Gilmar Mendes, foi a vez de o
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ligar para Silval Barbosa. Isso
mesmo: o chefe da PF foi interceptado... num grampo da PF. A secretária avisa:
“Governador, é o ministro da Justiça”. Curiosamente, a conversa começa quase
idêntica à anterior.
“Que confusão, hein, governador?”, diz Cardozo. Silval Barbosa
repete o que dissera a Gilmar Mendes sobre as acusações de corrupção.
“Barbaridade!”, diz Cardozo.
Silval Barbosa diz ao ministro que tinha uma arma com registro
vencido. Cardozo responde: “Muita gente não sabe disso, viu, Silval?”, diz o
ministro sobre as regras de renovação de porte. Cardozo ainda diz “que loucura”
quando o governador critica o fato de a investigação ser tocada no Supremo,
foro do ex-governador e atual senador Blairo Maggi, um dos investigados, e não
no Superior Tribunal de Justiça, foro de Silval Barbosa.
A conversa prossegue – em determinado momento, Silval Barbosa é
chamado de “mestre” por Cardozo. “O pessoal da PF se comportou direitinho com
você? (…) Eu queria saber muito se a PF tinha feito alguma arbitrariedade”, diz
Cardozo. “Fizeram o trabalho deles na maior educação, tranquilo”, afirma o
investigado. “Qualquer coisa me liga, tá, Silval?”, diz o ministro da Justiça.
ÉPOCA teve acesso com exclusividade à íntegra do inquérito
relatado por Dias Toffoli. É lá que se encontram os áudios transcritos nestas
páginas (ouça em epoca.com.br) – e as provas do caso. O inquérito foi batizado
com o nome de Operação Ararath – uma referência bíblica ao monte da história de
Noé, na qual só os policiais parecem encontrar sentido.
Iniciada em 2013, a investigação da PF e do Ministério Público
Federal desmontara um esquema de lavagem de dinheiro, crimes contra o sistema
financeiro e corrupção política no topo do governo de Mato Grosso. O caso subiu
ao Supremo quando um dos principais operadores da quadrilha topou uma delação
premiada. Entregou o governador e seus aliados, assim como comprovantes
bancários. No dia em que Silval Barbosa foi preso, a PF também fez batidas em
outros locais. Apreendeu documentos que viriam a reforçar as evidências já
obtidas.
No inquérito, há indícios de que Silval Barbosa recebeu dinheiro
do esquema (documento acima) (Foto: Reprodução)
No inquérito, há indícios de que Silval Barbosa recebeu dinheiro
do esquema (documento acima) (Foto: Reprodução)
A investigação exigiu do Ministério Público Federal uma
força-tarefa de procuradores, além de uma investigação em sigilo absoluto, com
direito à entrega de documentos em mãos ao procurador-geral da República,
Rodrigo Janot. Segundo as provas reunidas pelos investigadores, o esquema era
simples. O grupo político que governava Mato Grosso desde 2008, representado
pelo então governador Blairo Maggi, hoje senador, e Silval Barbosa, que era seu
vice, usava a máquina do governo para financiar campanhas eleitorais.
Empreiteiras com contratos no governo do Estado faziam pagamentos
a intermediários, que por sua vez repassavam dinheiro às campanhas. Esses
intermediários eram donos de empresas que funcionavam como pequenos bancos
ilegais. Mantinham à disposição do grupo político uma espécie de
conta-corrente. Silval Barbosa foi acusado de articular pessoalmente o
pagamento de R$ 8 milhões às campanhas dele e de seus aliados, nas eleições de
2008 e 2010. Há documentos bancários que confirmam o depoimento do delator.
Antes mesmo da batida no apartamento do governador, os delegados
foram peremptórios sobre a participação dele no esquema. “Além do crime contra
o sistema financeiro nacional, revela-se por parte de Silval Barbosa a prática
do crime de corrupção passiva, consubstanciada na solicitação – e posterior
recebimento – de empréstimo de R$ 4 milhões (na campanha de 2008), quantia que
não seria obtida mediante operação regular (vantagem indevida), para fins
eleitorais e partidários (satisfação das necessidades do PMDB), circunstância
ligada diretamente a sua atividade política e cargo ocupado (vice-governador);
a conduta foi praticada, portanto, em razão da função”, escreveram os delegados
ao STF.
O irmão mais novo de Gilmar Mendes, Francisco Mendes, pertence ao
mesmo grupo político de Silval Barbosa e Blairo Maggi. Francisco Mendes foi
prefeito de Diamantino, cidade natal da família. Apesar da proximidade com
Silval Barbosa, Francisco Mendes, ressalte-se, não está sob investigação da PF.
O ministro Gilmar Mendes também mantém boas relações com Silval
Barbosa. Em 21 de junho de 2013, quando Silval Barbosa era governador e o caso
começava a ser investigado pela força-tarefa, Gilmar Mendes foi ao gabinete
dele em Cuiabá para receber a medalha de honra ao mérito do Estado de Mato
Grosso. Assim falou Gilmar Mendes: “É uma visita de cortesia ao governador.
Somos amigos de muitos anos, temos tido sempre conversas muito proveitosas.
Fico muito honrado. Faço tudo para que o nome de Mato Grosso seja elevado”.
Em sete de outubro, quatro meses após o telefonema de
solidariedade a Silval Barbosa, o ministro Gilmar Mendes foi convocado a
desempatar um julgamento do inquérito. A Procuradoria-Geral da República pedira
ao Supremo que o principal operador do esquema, segundo a PF, fosse preso
novamente. Argumentava-se que ele tentara fugir – e tentaria de novo. Trata-se
de Éder Moraes. Ele fora secretário da Casa Civil, da Fazenda e chefe da
organização da Copa do Mundo em Mato Grosso nos governos de Blairo Maggi e
Silval Barbosa.
Quatro meses após ligar para Silval, Gilmar deu o voto decisivo para manter livre o
operador do esquema
O pedido foi julgado na primeira turma do Supremo, composta de
cinco ministros. Meses antes, Toffoli, o relator do caso, votara por mantê-lo
em liberdade. Os ministros Celso de Mello e Luís Roberto Barroso avaliaram que
não poderiam atuar no caso. Sem declinar as razões, Celso de Mello e Barroso se
declararam suspeitos. O ministro Luiz Fux votou com Toffoli, mas os ministros
Marco Aurélio Mello e Rosa Weber votaram a favor do pedido do Ministério
Público – pela prisão preventiva.
O julgamento estava empatado. Faltava um voto. O ministro Gilmar
Mendes avaliou que não tinha razões para se declarar impedido ou suspeito de
participar do julgamento. Votou contra a prisão do acusado. Foi o voto que
assegurou a liberdade de Éder Moraes – que, segundo as investigações, era o
parceiro de Silval Barbosa no esquema.
Procurados, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli disseram que
não conversaram sobre o processo. ÉPOCA enviou ao ministro Gilmar Mendes cópia
do diálogo interceptado pela PF.
Em nota, o ministro negou qualquer conflito de interesses ao
participar do julgamento do operador. Também não viu problemas no teor do
telefonema de solidariedade ao investigado. “Ao ser informado pela imprensa
sobre a busca e apreensão na residência do então governador do Estado do Mato
Grosso, com quem mantinha relações institucionais, o Min. Gilmar Mendes
telefonou ao Governador Silval Barbosa para verificar se as matérias
jornalísticas eram verídicas”, diz a nota.
A assessoria do ministro disse ainda que ele usou as expressões
“que absurdo” e “que loucura” como interjeições, sem juízo de valor. Gilmar
Mendes preferiu não fazer nenhum comentário adicional sobre o assunto.
A amigos, Gilmar Mendes disse que seu voto no caso obedeceu aos
mesmos princípios que ele sempre seguiu em julgamentos de pedido de prisão.
Segundo a assessoria de Gilmar Mendes, o ministro não julgou Silval Barbosa e,
mesmo nesse caso, não haveria motivo para impedimento ou suspeição porque,
segundo Gilmar Mendes, eles não são amigos íntimos.
“O ministro Gilmar Mendes foi convocado a participar do julgamento
de agravo regimental pela Primeira Turma e, no caso, não se verificam quaisquer
das hipóteses de suspeição e impedimento, estritamente reguladas nos artigos
277 a 287 do RISTF, 95 a 107 do CPP e 134 e 135 do CPC”, diz uma nota do
ministro.
As leis e as normas citadas pelo ministro estipulam os casos em
que um magistrado pode se declarar impedido ou suspeito para julgar um caso. Há
uma diferença entre impedimento e suspeição. Um juiz declara-se impedido de
julgar determinado processo por critérios objetivos. Quando há razões
subjetivas que possam comprometer a parcialidade do juiz, ele deve se declarar
suspeito. Um juiz deve se declarar impedido quando, por exemplo, ele for
parente de uma das partes do processo.
Os critérios subjetivos que determinam a suspeição do juiz são
vagos: incluem ser “amigo íntimo ou inimigo capital”. Na prática, com exceção
de casos muito claros, como os que envolvem parentesco com os acusados, o juiz
tem liberdade para decidir, caso a caso, quando deve se declarar impedido ou suspeito.
O ministro Dias Toffoli, relator do caso. Ele diz que não falou
com Gilmar Mendes sobre a prisão do governador (Foto: Alan Marques/Folhapress)
Ouvido por ÉPOCA, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
disse que é seu dever apurar abusos da Polícia Federal e, por isso, ligou para
o governador.
“Sempre que recebo algum tipo de informação de que pode ter
ocorrido algum tipo de abuso, é meu dever apurar. Era uma mera busca e
apreensão, e não havia prisão. Posteriormente, pela imprensa, chegou a
informação de que o governador tinha sido preso. Deputados também tinham dito
que houve arbítrio. E para checar exatamente o que tinha acontecido, eu liguei
para o governador para saber o que tinha acontecido.”
Segundo Cardozo, ele mantinha contato frequente com Silval Barbosa
por ser governador e, por isso, ligou diretamente. O ministro afirmou ainda
que, ao falar em “loucura” e “barbaridade”, usou expressões de concordância,
sem juízo de valor.
O advogado de Silval Barbosa, Antônio Carlos de Almeida Castro, o
Kakay, disse que não há provas contra o ex-governador. “O caso está sendo
investigado e a única base das acusações é uma delação que já foi, inclusive,
desmentida pelo delator mediante retratação formal. A defesa não considera que
exista qualquer prova de irregularidade contra o governador Silval Barbosa”,
disse.
O senador Blairo Maggi negou qualquer participação no esquema. O
advogado de Éder Moraes, Rodrigo Alencastro, negou a participação de seu
cliente como operador do grupo de Silval Barbosa.
“Ele jamais teve esse papel de operador e nem sequer conhece a
existência do esquema. Essas afirmações do delator são todas peremptoriamente
negadas por Éder Moraes”, disse.
No Supremo, após a decisão que manteve solto o homem acusado de
ser o principal operador do esquema, o inquérito contra Silval Barbosa e Blairo
Maggi tramita lentamente.
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