Vestida como menina e cercada de casinhas e bonecas, a criança de
9 anos que conseguiu na Justiça o direito de realizar a mudança de gênero e de
nome no documento afirma que já projeta o futuro e diz que pretende ter um
marido e ter três filhas. A menina, que mora com a família em Sorriso,
município a 420 km de Cuiabá, revela que tem medo que as amigas não aceitem sua
condição.
A família da menina conseguiu o direito à alteração dos
documentos com base numa sentença dada
pelo juiz Anderson Candiotto, da 3ª Vara da Comarca de Sorriso, no dia 28 de
janeiro. O magistrado entendeu que a decisão “foi dada para garantir que a
criança, assim como ela se vê na sua individualidade e na sua orientação
feminina, seja respeitada e tratada de forma como é”. A decisão é inédita no
Brasil.
Todo o processo de mudança foi acompanhado por psicólogos e
especialistas. Antes de ingressar na Justiça, a família levou a menina para
acompanhamento com especialistas do Ambulatório de Transtorno de Identidade de
Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense do
Instituto de Psquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP). Na unidade, os médicos psiquiatras constataram
o transtorno de identidade sexual.
A menina gosta de pintar as unhas, usar saias, vestidos e
sapatilhas. Ela conta que não se sentia bem quando era tratada como menino. “Eu
não gostava. Não me sentia bem. Ficava muito triste”, relata. Ela diz que não
sentia bem com as atividades esportivas da escola porque, entre outras coisas,
não gostava de futebol.
Entre os sonhos dela está trabalhar em um canal de televisão e
cursar design. A criança fala até sobre a vontade de constituir uma família,
que será composta pelo “esposo e três filhas meninas. Os nomes delas serão
Sofia, Camile e Priscila”.
Ela diz ter ficado feliz com a decisão judicial porque a mudança
dos documentos lhe trará menos problemas e constrangimentos. “Eu gostei
bastante. Foi muito interessante porque não vai dar aquela correria quando eu
chego no postinho [de saúde]. Minha mãe chega lá e ela tem que falar que
esqueceu a identidade e que eu sou transexual”, lembra.
A menina diz que prefere que as amigas mais próximas não descubram
sua condição, pois tem receio do que pode acontecer com as amizades. “Tenho
medo de quando elas descobrirem. Eu tenho medo de que elas não queiram mais
serem minhas amigas”, afirma.
Em entrevista ao Jornal Nacional, a psicóloga Cristiane Isabel
Guerra, que acompanhou o caso desde o começo, explica que a mudança e o
trabalho em relação à adequação da criança ao gênero ao qual ela pertence, não
foi feita de maneira precipitada.
“Não é cedo demais porque não foi algo que aconteceu da noite para
o dia. Foram feitos estudos e acompanhamentos. Foi avaliado o desconforto e o
constrangimento que ela passava em algumas situações. Talvez com outra criança
acontecesse em outro momento. Mas com ela aconteceu no momento necessário”,
defende.
Cristiane ainda aponta que existe uma confusão sobre o conceito de
transexualidade entre o público em geral. “São três questões, na verdade.
Existe o conceito de sexo, que é como você nasce e é a biologia que te dá. Você
tem sua orientação, que é ligada ao afeto e à atração que você tem por outras
pessoas. E existe o transexual que é o sujeito que tem um gênero que não
corresponde ao seu sexo biológico”, afirma.
Caso
A mãe da menina, que pediu para não ter a identidade divulgada,
conta que desde pequena a criança apresentava comportamentos que não
correspondem ao gênero em que nasceu.
“Desde bem pequena, ela tinha gestos femininos, apontava para
objetos cor de rosa na TV, tirava o tênis do pé na escola para calçar as
sandálias das colegas. Não aceitava vestir roupa de menino. Tirava o short e
ficava de camiseta para ficar parecida com um vestido”, conta.
Em uma das situações mais complicadas, a mãe conta que a criança
já tentou cortar o pênis com uma tesoura. “Ela saiu do banho, passou perto de
uma máquina de costura e pegou uma tesoura. [Ela] sentou e falou que queria
cortar o “piu piu“ porque queria ser menina”, relata.
A menina deve ser submetida a uma cirurgia para a troca de sexo
quando completar 18 anos. E, com a decisão judicial que permite a troca do nome
e gênero nos documentos de identidade da criança, para a família, a cirurgia
será a única mudança necessária para, de fato, o menino se tornar menina.
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