Ana Lis Soares
Mais de 150 milhões de mulheres vivas em todo o mundo foram mutiladas e outras 86 milhões podem sofrer a prática até 2030, segundo a ONU |
"Quando eu tinha 13 anos, alguns vizinhos vieram em nossa
casa e me forçaram a deitar no chão. Em seguida, seguraram minhas pernas
abertas e uma mulher velha cortou minha genitália: meu clitóris, os lábios
interior e exterior e, depois disso, minha vagina foi costurada. Foi a pior dor
que eu já senti na vida e, naquele momento, eu só queria morrer. Desde este dia
cruel, tive grandes problemas para urinar, sentia dores terríveis quando
menstruava e, por diversas vezes, pensei que nunca poderia ter uma relação
sexual com um homem. Nem que poderia ser mãe". Este é o depoimento de Inab
Abduliah, de 19 anos, nascida em Ali Sabieh, Djibouti, na África, concedido com
exclusividade pela Fundação Flor do Deserto (Desert Flower Foundation) ao
Terra, sobre o dia em que ela teve sua genitália mutilada e as consequências
sofridas por ela ao longo de mais de sete anos.
Poderia ser um roteiro de filme de horror, mas é realidade de mais
de 150 milhões de mulheres vivas em todo o mundo. Todas elas, mutiladas.
Tiveram o corpo e o direito ao prazer cortados por facas, cacos de vidro ou
lâminas caseiras. Sem anestesia. E sem consentimento.
"Eles nos levaram – a mim e outras meninas – e cortaram-nos
uma a uma. Foi um verdadeiro trabalho de açougueiro. O sangue estava por toda
parte. Eu quase morri de dor e por causa do forte sangramento e, desde este
dia, sofria de inflamações e dores terríveis quando precisava ir ao banheiro.
Eu tinha apenas 5 anos de idade", relatou Senait Demisse, 28 anos, de
Nazareth, Etiópia, África.
O que é FGM
A mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês) é uma
prática em que parte ou todo o órgão sexual de mulheres e crianças é removido.
A chamada infibulação consiste na costura dos lábios vaginais ou do clitóris,
feita com pontos ou espinhos; nestes casos, é deixada apenas uma abertura
pequena para urina e menstruação, assim como ocorreu com a africana Inab
Abduliah. Segundo dados da ONU, pelo menos 15% das meninas mutiladas na África
passaram por uma infibulação.
A menina Safa, ainda criança, durante gravações do filme
"Flor do deserto"
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
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Os casos de mutilação estão concentrados na África (com 28 países
praticantes) e no Oriente Médio, mas também há praticantes na Ásia e em
comunidades imigrantes na Europa, América do Norte e Austrália. Num estudo
realizado pela ONU, descobriu-se que a Europa é moradia de mais de 500 mil
meninas mutiladas.
O fim da prática da mutilação genital é uma das metas da ONU em
relação à violência contra a mulher. O secretário-geral das Nações Unidas, Ban
Ki-moon, afirmou que não há nenhuma razão religiosa, de saúde ou de
desenvolvimento para mutilar ou cortar uma mulher. Segundo estimativas da
organização, 86 milhões de meninas serão mutiladas até 2030, apesar de ser
considerada ilegal. O dia 6 de fevereiro foi escolhido como Dia Internacional
de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, celebrado para denunciar a
prática.
"A FGM não é considerada como algo legítimo
internacionalmente, por ser violenta, agredir os direitos sexuais das mulheres
e não permitir que usufruam do próprio corpo. Inclusive é ilegal em países onde
é praticada, como no Egito. Mas há grupos que seguem culturas e religiões nas
quais é exercida pelas famílias: muitas vezes pela avó e mães; as meninas que
sofrem são muito jovens. É algo que funciona em núcleos familiares e, portanto,
levado por diversas gerações", explica o cientista político e assessor de
direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro.
Mariam Coulibaly exibe as ferramentas que utilizava para
realizar a mutilação de meninas em seu país: uma faca que era de sua mãe e
ervas, para curar as feridas, em Salemata, sudeste do Senegal, em janeiro de
2003
Foto: AP
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A mutilação pode provocar diversos problemas para as vítimas:
infecções crônicas, sangramento intermitente, dores na relação sexual, pequenos
tumores benignos em nervos, pedras na vesícula e uretra, danos aos rins,
infertilidade, entre outros. Em relação às consequências psicológicas, a FGM
pode causar ansiedade, medo e sentimentos de humilhação, vergonha e revolta.
Proibida, porém prevalente, a mutilação da genitália feminina
chega a ser praticada em 99% das mulheres em países como Djibuti e Somália, na
África. As justificativas apontadas são muitas: as famílias acreditam que,
mutiladas, as filhas poderão se casar com homens "melhores", que não
as aceitariam não-circuncisadas. Isto porque algumas culturas acreditam que os
órgãos femininos são impuros e a prática traz higiene. Com a retirada do
clitóris, também acreditam que as possibilidades de acontecerem relações
sexuais extraconjugais são diminuídas.
Safa e Inab em Djibouti, África, onde a Fundação possui
projetos para evitar que novas meninas sejam mutiladas; no país, a prática
atinge quase 99% das mulheres
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
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Vida livre e reconstruída
"As mulheres sofrem mutilação física e psicológica. Então, o
sentimento é sempre de muita vergonha. Quando migram para outros países e
percebem que não é certo sentir dor em relação sexual, descobrem que foram
vítimas de mutilação criminosa, portanto podem optar pela reconstrução da
vagina. Mas esta decisão é sempre acompanhada de muitos sentimentos
conflitantes, pois é difícil perceber o crime numa tradição e ensinamentos
arraigados há gerações e gerações", conta a médica cirurgiã Beatriz
Lassance, que trabalhou em Amsterdã, no departamento de cirurgia plástica Onze
Lieve Vrouwe Gasthuis, com o médico Refaat Karim, referência em cirurgia
ginecológica de reconstrução.
Beatriz participou da operação de várias meninas africanas
mutiladas. "O clitóris é um órgão retrátil e, por isso, a amputação é
sempre parcial, o que permite a exposição e reposicionamento com cirurgia. Já
as estruturas externas são reconstruídas com tecidos adjacentes por enxerto ou
retalhos de pele", explica.
Porém, segundo a médica, as meninas devem passar por intenso
trabalho psicológico, sendo esclarecidas e preparadas para as mudanças que a
"liberdade" trará antes de realizar o procedimento. "Existe um
conflito interno. Mas é visível que, após a cirurgia, elas se sentem mais
mulheres", afirma.
As flores do deserto
A Desert Flower Foundation (Fundação Flor do Deserto) foi fundada
no início dos anos 2000 pela ex-top model somaliana Waris Dirie. Assim como 99%
das meninas de seu país, Dirie também passou por mutilação genital quando tinha
apenas 5 anos. "Aquele dia mudou minha vida para sempre. Depois que me
senti um pouco melhor, eu sabia, mesmo sendo uma garotinha, que aquilo foi
errado e que iria lutar contra este crime brutal, mesmo sem saber quando, onde
e como", diz Dirie.
Aos 13 anos, a ex-modelo fugiu da pequena comunidade em que vivia,
na Sómalia, por causa de um casamento forçado - ela foi vendida pela família em
troca de cinco camelos a um homem que teria idade para ser seu avô. Chegando a Londres, trabalhou como faxineira
na Embaixada da Somália e no Mc'Donalds, sendo descoberta aos 18 anos pelo
fotógrafo Terrence Donovan.
Waris Dirie foi convidada a ser embaixadora especial da ONU
contra a prática de mutilação de meninas
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
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Em uma entrevista à revista Marie Claire, Waris contou sua
história, começando, assim, a realizar sua promessa de lutar contra a prática.
Em 1996, Waris foi convidada para ser Embaixadora da ONU contra a FGM. Viajando
pelo mundo em campanha, reuniu-se com ex-presidentes como Bill Clinton e
Michael Gorbachev e ministrou diversas palestras em congressos.
Em 2002, a ex-modelo abriu sua própria fundação - Waris Dirie
Foundation - com sede em Viena, na Áustria, para apoiar seu trabalho como
ativista. Em 2010, a Fundação foi renomeada como "Desert Flower", e
hoje faz trabalhos em comunidades africanas, além de atender mulheres na
Alemanha e possuir um curso de preparação de médicos para a cirurgia de
reconstrução na Holanda com o Dr. Refaat Karim.
"As mulheres jovens, principalmente, sentem que foram vítimas
de um crime. Elas sentem que algo lhes foi tirado quando eram crianças. As mais
idosas defendem a prática, pois acreditam que isto faz parte de sua cultura ou
religião", conta o diretor da Fundação Flor do Deserto, Walter
Lutschinger, que é otimista em relação ao futuro dessas meninas.
Lutschinger acredita que o fim da mutilação está mais próximo do
que nunca. "Graças às leis contra a FGM em quase todos os países, inúmeras
campanhas, milhares de relatórios divulgados pela mídia, muitas meninas puderam
e poderão ser salvas. Nós realmente acreditamos que esse crime vai acabar neste
século", afirma.
Inab e Senait com a médica cirurgiã, Cornelia Strunz, após o
procedimento cirúrgico em Berlim
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
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Em alguns anos de trabalho, a Fundação já recebeu e-mails de mais
de 120 mil mulheres que gostariam de "renascer", fazendo uma operação
de reconstrução e, até mesmo, trabalhando para evitar que outras mulheres sejam
mutiladas.
Como é o caso de Senait Demisse, que passou mais de 20 anos
sofrendo de dores, operada recentemente pela Fundação Flor do Deserto, na
Alemanha. Ela diz que agora se sente livre e que se casará em breve. "Eu
contei para minhas amigas sobre a cirurgia e agora todas querem vir para Berlim
fazer", afirma.
Inab Abduliah também foi operada este ano. "Fiquei sabendo
sobre o trabalho da Fundação e, após uma conversa, voei a Berlim por conta
deles e concordei imediatamente em operar. Agora, minha vida é normal e me
sinto uma mulher completa", contou.
Hoje, a africana trabalha para a Flor do Deserto em seu país,
Djibouti. "Trabalho para proteger minhas duas irmãs pequenas e outras
garotas da tortura brutal", a que são submetidas mais de 90% das mulheres
de seu país, conta a jovem.
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