A mensagem veiculada em O Dilema das Redes pode ser apontada por alguns como apocalíptica e exagerada, mas ao passo que o documentário da Netflix avança cada um de seus 89 minutos, ficamos gradativamente estarrecidos com a proximidade dos fatos em relação ao nosso cotidiano de cidadão comum, atingido pela relação entre algoritmos, redes sociais, invasão de privacidade e até projetos de derrocada do que conhecemos por democracia.
É assustador contemplar uma produção que aprofunda alguns pontos sobre a relação da humanidade atual com o lado “negativo” da cibercultura, afinal, qualquer pessoa minimamente atenta ao mundo que gravita ao seu redor sabe que os smartphones e seus desdobramentos, isto é, os aplicativos e os serviços oferecidos tem deixado pessoas viciadas, doentes, depressivas e até mesmo impulsionada ao suicídio. Diria com segurança que, salvaguardadas as devidas proporções, O Dilema das Redes é o equivalente didático documental do que Black Mirror é para o campo da ficção.
Vamos aos fatos. Logo na abertura, uma citação de Sófocles. “Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”. É o estabelecimento de atmosfera ideal para entendermos o que vem mais adiante. Louvamos a internet e seus processos evolutivos. Para alguns, ficou mais fácil paquerar e quebrar o gelo dos encontros presenciais, tendo neste espaço o compartilhamento de material de apresentação introdutório que ajudou muito tímido e se relacionar com menores palpitações cardiovasculares.
Para outros, a comunicação com amigos, colegas e familiares que antigamente penavam com as ligações interurbanas caras e de baixa qualidade, ainda sem a possibilidade de acompanhamento da imagem, em simbiose com a voz em nossa atual era de redes sociais e aplicativos. Eis alguns dos presentes, cobrados com tamanha agressividade e violência para os usuários que nos colocamos diante do “dilema” das redes do título: tais bençãos compensam tantas celeumas? É vantagem adentrar neste terreno pantanoso?
Dirigido por Jeff Orlowski, os depoimentos do documentário com roteiro assinado por Davis Coombe e Vickie Curtis, além do próprio Orlowski, convergem para um sonoro “não”. Interessante que todos os participantes são pessoas com larga experiência na área, cidadãos que assumem as vantagens mencionadas anteriormente e até confessam que ainda estão em processo de desmame de vícios oriundos das redes sociais criticadas.
Tem gente que já foi do Google, do Facebook, Pinterest, Instagram, Twitter, etc. São opiniões sempre bem fundamentadas e embasadas em muitas teorias comprovadas cientificamente. Entre um depoimento e outro, temos a inserção de dramatizações, lado menor da produção, mas que também não atrapalha. São atores que encenam uma família em crise, pois a filha adolescente prefere ficar no smartphone ao se alimentar ou ter qualquer interação com seus pais e irmãos.
É uma representação didática, importante para que O Dilema das Redes atinja ao máximo de pessoas com um conteúdo acessível e muito urgente, bastante atual por sinal, com comentários sobre fake news, eleições, covid-19 e a pior teoria da contemporaneidade: o terraplanismo, conteúdos disseminados com maior impulso dentro do contexto e das ferramentas criticadas pela produção.
Para quem conhece o livro Dez Argumentos Para Você Deletar Agora as Suas Redes Sociais, de Jaron Lanier, também entrevistado pelo documentário, a sensação que temos é a de conexão entre ambos os conteúdos. Pioneiro na área dos estudos e desenvolvimento de produtos tecnológicos virtuais, Lanier hoje é contrário aos “monstros” que ele próprio participou da criação e em diversos momentos de O Dilema das Redes, ele comenta que há muita ingenuidade das pessoas usuárias de redes sociais, indivíduos que sequer reconhecem os efeitos colaterais dos produtos que consomem.
A escrita “manifesto” e mais uma vez, a urgência do assunto, faz parecer que é muito radicalismo, mas não é. Quem vos escreve tem duas experiências que parecem bobas, mas na verdade são bastante abusivas. A primeira foi uma conversa boba em casa próximo dos smartphones aparentemente “desconectados”. Falava-se sobre a necessidade de compra de uma nova geladeira e ao abrir o e-mail horas depois, olha lá a quantidade de refrigeradores ofertados sem ninguém sequer ter digitado nada no computador.
De volta ao livro de Jaron Lanier, também participante do documentário, vamos entender um pouco mais essa conexão: para o autor, evitar as redes sociais é como evitar as drogas. Isso também faz lembrar um depoimento de uma jovem colega ainda na época do Ensino Médio, lá pelos anos 1990. Ela dizia que a tia trabalhava numa fábrica de biscoito recheado. Seu salário ajudava a família, dava suporte, mas uma coisa era certa: não significava que por trabalhar nessa fábrica, as pessoas que ela amava podiam consumir biscoitos do tipo em sua frente.
Era “sentença de morte”. Por acompanhar os processos e entender como se davam os mecanismos de produção, a observadora queria poupar o máximo dos organismos humanos ao seu redor. O mesmo ocorre com as redes sociais e seus criadores. Todos os depoentes que possuem filhos dizem que uma das regras é a proibição ou o alto controle desses mecanismos dentro de suas casas, pois como eles eram idealizadores destes projetos, sabiam exatamente como as grandes corporações utilizavam estratégias psicológicas para fisgar os jovens ainda em formação.
A lógica de Jaron Lanier é essa: se antes as pessoas tinham um produto ofertado, a complexidade dos algoritmos da atualidade manipula até mesmo aqueles que acreditam ter a força suficiente para virar o jogo. E dá-lhe compra de seguidores, ansiedade para saber se determinada postagem vai alcançar as curtidas e o engajamento esperado, noites de insônia para pensar no conteúdo a ser postado no dia seguinte e ao longo da semana, dispersão de outras atividades, sedentarismo, etc.
Perda de livre-arbítrio, inflamação de bullying e rotulação de seres humanos como mercadorias, uso de bots com teorias absurdas, bastante utilizados, por exemplo, nas últimas eleições presidenciais de 2018 no Brasil, além da falta de empatia de indivíduos em bolhas, transformados em publicidade, mergulhados numa sensação constante de infelicidade e minados do conceito convencional de democracia que tanto se luta e se discute. Sitiados pelas redes que nos pressionam num invólucro sufocante, somos cada vez mais parte de uma civilização reprogramada constantemente, numa velocidade demasiadamente frenética.
Para você, caro leitor, pode não parecer assustador, mas noutra situação, enquanto mandava áudios para uma pessoa via Whatsapp, comentávamos sobre fazer fotos no laboratório e focar bastante num microscópio, pois o dialogo era sobre a construção de um perfil no Instagram para uma especialista em Microbiologia. Não é que minutos depois, ao acessar um site de compras e as redes sociais, várias ofertas de microscópios protagonizam a página inicial de acesso?
Para quem está acostumado com esse engolimento diante
das redes, isso pode parecer bobagem, mas não é, pois a gravidade do caminho
que já trilhamos dificilmente possui retorno. Cabe agora a nossa constante
vigilância e a busca por amenizar ao máximo os danos provenientes deste
processo cultural que também te alija de muitas coisas se você não se permite
fazer parte nem que seja como um mero figurante, num processo de alienação
dentro de alienação circular.
O que podemos observar com o avanço das teses explanadas é a impossibilidade de permitir que usuários driblem, de maneira mais sadia, os embates ardilosos com as inteligências artificiais que engendram tais mecanismos da atual era da virtualidade. São tantas estratégias sorrateiras estudadas por equipes e máquinas que analisam quando estamos doentes, tristes, ansiosos, alegres, etc. Hashtags, curtidas e postagens que informam padrões identificados, codificados e transformados em material para promoção de uma cultura destrutiva onde o ser humano parece nunca alcançar satisfação diante de padrões, tipos, regras estabelecidas que não dialogam com o que chamamos de “realidade”.
Prova disso é a “disformia Snapchat”, causada por pessoas que buscam cirurgias plásticas e tratamentos invasivos para acompanhar os filtros e demais recursos ofertados pelas redes sociais. Sem o devido preparo e com tantas ânsias que coadunam com os seus respectivos contextos históricos, temos o surgimento cada vez maior de uma massa de pessoas enfraquecidas por um sistema que não se importa com saúde mental e atender aos princípios éticos quando o lance é monetizar em cima do usuário de rede social.
Para engrossar mais o caldo crítico e tornar a tese mais aprofundada, a edição de Davis Coombe insere trechos de reportagens jornalísticas de veículos de comunicação dominantes da atual cultura da mídia televisiva. Somado a isso, temos gráficos e animações muito bem construídos, preocupados em explicar minuciosamente ao espectador que possivelmente é um usuário de rede social, sobre o porque dele ser “um produto” do chamado “capitalismo de vigilância”.
No que tange aos seus aspectos estéticos, a produção não apresenta novidades, mas nem por isso se isenta de ousar nos efeitos visuais da equipe de Matthew Poliquin, integrante do Ingenuity Studios. Nas partes onde não temos os tradicionais depoimentos captados por uma direção de fotografia em plano médio ou geral, os personagens da “encenação” são envolvidos por efeitos que flertam com a ficcionalização dos temas debatidos pelos especialistas.
É
como uma brincadeira de super-heróis, com o embate entre humanos e as forças do
mal, neste caso, as redes sociais, passagens que podem soar como ingênuas para
alguns, mas como mencionado, não deturpam o produto final. A condução musical
de Mark A. Crawford é intensa, muito próxima aos acordes de um filme de terror,
utilizada no documentário de maneira sensacionalista, mas algo que me permite a
mea culpa por aqui, tendo em vista a importância do conteúdo debatido e a
necessidade de atrair os espectadores por imagem e som. Para depoimentos que
dizem sermos “zumbis”, não cobaias das redes, textura musical melhor não há!
Grifo meu, na verdade, pois a fala da entrevistada vai até a parte sobre “conhecer melhor o outro”, no entanto, combinado aos demais depoimentos e numa observação de nossa própria realidade, a interpretação de oferta como algo coeso e coerente. Ah, dentre os participantes, destaco também Triston Harris, ex-funcionário do Google, responsável pelo setor de “persuasão”. Hoje ativista, ele é uma espécie de ponto nevrálgico da produção, muito seguro em sua fala e dono de ganchos rizomáticos que se conectam com os demais entrevistados.
- O Dilema das Redes — (The Social Dilemma, Estados Unidos/2020)
- Direção: Jeff Orlowski
- Roteiro: Jeff Orlowski, Davis Coombe, Vickie Curtis
- Elenco: Skyler Gisondo, Tristan Harris, Sophia Hammons, Kara Hayward, Chris Grundy, Vincent Kartheiser, Catalina Garayoa, Barbara Gehring
Duração: 89 min.
FONTE: https://www.planocritico.com/critica-o-dilema-das-redes/
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