Em pleno ano de pandemia da Covid-19, com medidas de distanciamento em vigor, candidatos a prefeito e a vereador gastaram no ano passado quase R$ 200 milhões em combustíveis, locação de veículos, além de transporte, hospedagem e passagens aéreas. Esses recursos saíram especialmente do fundo público de financiamento de campanha. Segundo levantamento da Folha com ferramenta do Transparência Partidária, desenvolvida pelo Volt Data Lab, e usando dados da prestação de contas dos candidatos, o campeão de gastos com combustíveis e lubrificantes foi o deputado Nicoletti (PSL-RR), candidato derrotado do PSL à Prefeitura de Boa Vista.
Nicoletti declarou ter gastado R$ 385 mil em combustíveis e lubrificantes com recursos do fundo especial de financiamento de campanhas, sendo R$ 380 mil pagos a um mesmo CNPJ. Com esse dinheiro, levando-se em conta o preço médio da gasolina e do diesel em Boa Vista, é possível rodar 1.097.886 km de Uno Mille, o que equivale a dar a volta no globo terrestre 27 vezes.
Questionado pela Folha, o deputado informou que foram utilizados carros alugados “durante toda a campanha, em um total de 88 veículos por um prazo de 45 dias, com uma média de consumo de 15 litros diários”. Isso significaria que cada 1 dos 88 veículos rodou 195 km por dia, todos os dias, durante 45 dias, em uma eleição municipal. Ou que cada um dos carros teria cruzado a área urbana de Boa Vista de ponta a ponta 438 vezes no período.
Outros gastos chamam a atenção. Agências de viagens, por exemplo, receberam R$ 1,9 milhão em um pleito que, além de atípico por causa da pandemia, era municipal, sem exigir deslocamentos nacionais ou estaduais. Hotéis e similares faturaram R$ 1,1 milhão, e operadores turísticos, R$ 326 mil.
O segundo recordista de gastos com combustível na eleição municipal de 2020 foi Pedro Gonçalves, do MDB, candidato derrotado à Prefeitura de Goianésia (GO). Gonçalves declarou ter gastado R$ 319,8 mil na rubrica combustíveis e lubrificantes, com recursos de doadores de campanha e autofinanciamento. Procurado, o candidato informou, por meio de seu advogado, Adélio Mendes, que “se trata de combustível de veículos alugados/cedidos por candidatos a vereadores, em um total de 60 veículos para 108 candidatos”.
Segundo Denise Schlick Mann, secretária-geral adjunta da Abradep, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, não se pode doar combustível para outros candidatos.
De acordo com resolução do TSE de 2019, as despesas são consideradas gastos eleitorais apenas quando os combustíveis são usados para veículos em carreatas (até o limite de 10 litros por veículo), para veículos utilizados a serviço da campanha (decorrentes da locação ou cessão temporária) ou para geradores de energia. “Doação para terceiros não é possível”, diz Mann, fazendo a ressalva que não analisa casos específicos, apenas a legislação eleitoral.
Segundo a advogada, gastos com combustíveis, impulsionamento de conteúdos na internet e materiais impressos são as categorias em que há mais problemas na prestação de contas. Em relação ao combustível, segundo ela, é sempre difícil comprovar que os veículos que o utilizaram eram mesmo da campanha e que não houve compra de votos por meio de combustível. Além disso, no caso de Gonçalves, os candidatos a vereador não declararam ter recebido a doação de combustíveis do candidato. Eles declararam apenas o pagamento pela cessão ou aluguel de seus veículos, mas não a doação de combustível mencionada por Gonçalves.
Questionado sobre isso, o advogado do candidato depois afirmou que o combustível “foi utilizado em veículos cedidos por candidatos a vereadores, mas que, além das suas próprias campanhas, também estavam na campanha majoritária para prefeito”. “Por logo, propriamente não existiu uma doação de combustível ao candidato a vereador, uma vez que estes, além da suas próprias candidaturas, também estavam apoiando a campanha para prefeito, muito comum em campanhas eleitorais.”
Levando em conta o valor declarado em gasto com combustíveis e os preços médios de gasolina no estado, cada um dos 60 carros mencionados por Gonçalves teria circulado 320 km por dia durante 45 dias. Em nota, Gonçalves disse: “O fato de termos registrado um gasto em combustíveis maior do que a média nacional se dá em razão de termos declarado exatamente tudo o que efetivamente foi gasto, sem se utilizar de nenhuma omissão ou subterfúgio.” “Existe uma lamentável prática em campanhas eleitorais de se omitir boa parte de gastos em combustíveis, pois são gastos que, nessa atrasada prática, acontecem à margem da contabilidade eleitoral oficial, às escondidas, a fim de ludibriar a população e a Justiça Eleitoral”, completou.
Outro candidato recordista em gastos com combustíveis foi o Delegado Cristiomário (PSL), que se elegeu prefeito de Planaltina (GO). Ele declarou ter gastado R$ R$ 228,2 mil com combustíveis e lubrificantes –e só declarou R$ 3.000 com cessão e locação de veículos, referente ao aluguel de um ônibus. Em resposta a questionamento da Folha, disse que os “R$ 228 mil foram utilizados no abastecimento de dois ônibus que estiveram na realização de duas carreatas” e no abastecimento de veículos vinculados a 190 candidatos a vereador da região, de sua coligação.
No entanto a promotora eleitoral de Goiás Michelle Martins Moura recomendou a reprovação das contas do candidato, apontando uma série de inconsistências, como registro de abastecimento de veículos em quantidade acima da capacidades de seu tanque. Na quinta-feira (11), a Justiça eleitoral determinou a reprovação das contas e o pagamento, pela campanha de Cristiomário, de R$ 422.499,71 ao Tesouro Nacional.
A promotora aponta ainda que não se pode transferir recursos financeiros ou estimáveis em dinheiro do fundo eleitoral para candidatos ou partidos não pertencentes à mesma coligação e/ou não coligados (e não existem coligações para eleições proporcionais). Além disso, Ricardo Marques, o perito que fez o parecer que embasou a opinião da promotora, ressalta que, “sobre essas ‘doações’ a outros candidatos, pairam dúvidas sobre o controle e a real aplicação do gasto”.
Para Marcelo Issa, diretor-executivo do Transparência Partidária, a Justiça eleitoral precisa aprimorar o cruzamento dos dados das declarações de gastos de campanha para ser mais eficiente ao detectar fraudes e incorreções. “Temos uma infraestrutura moderna e segura de apuração dos votos, temos transparência na contabilidade eleitoral, mas faltam sistemas de monitoramento mais eficientes, que disparem alarmes de irregularidades ainda durante a campanha”, diz Issa.
A assessoria do deputado Nicoletti enviou nota na qual diz que o “valor gasto corresponde exatamente às quantidades utilizadas, de gasolina e óleo diesel, durante a campanha à prefeito, prezando sempre pelo princípio da transparência e licitude para com os gastos com os recursos públicos recebidos.” Indagados sobre o motivo de terem feito mais de 98% dos gastos em uma só rede de postos de gasolina, informaram que foi “a rede que apresentou as melhores condições de atendimento (número de postos e localização) e preços, tendo em vista as particularidades dos gastos eleitorais.”
Por meio da assessoria, o candidato do PSL afirmou, ainda, que alugou “88 veículos pelo prazo de 45 dias (período da campanha) pelo valor total de R$123.884, com um custo médio de R$ 1.400 por veículo a ser utilizado nos 45 dias”. Isso equivale a um custo médio de aluguel de R$ 31 por dia, abaixo da cotação mais barata encontrada para período semelhante, de R$ 65.
A assessoria acrescentou também que foram “realizadas cinco carreatas, com cerca de 400 veículos e 80 motocicletas por carreata, totalizando cerca de 2.000 carros e 400 motocicletas”. Mas não esclareceu quanto combustível foi usado para isso, e qual o custo.
GASTOS DOS CANDIDATOS
– R$ 385 mil foi o gasto declarado do deputado Nicoletti (PSL-RR), candidato derrotado à Prefeitura de Boas Vista, em combustíveis e lubrificantes
– R$ 319,8 mil foi o gasto declarado por Pedro Gonçalves, candidato derrotado à Prefeitura de Goianésia (GO) pelo MDB, em combustíveis e lubrificantes
– R$ 1,9 milhão foi o valor pago a agências de viagens
– R$ 1,1 milhão foi o faturamento de hotéis e similares
FOLHAPRESS
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